quarta-feira, novembro 09, 2005

Borges (2)

Outro trecho interessantíssimo:

"Vou procurar, então, recordar um conto meu. Enquanto me traziam para cá, fiquei pensando em um conto meu, não sei se vocês leram, e que se chama “El Zahir”. Vou lembrar como cheguei à concepção desse “conto”.
Não recordo a data em que o escrevi, sei apenas que era diretor da Biblioteca Nacional, que fica no sul de Buenos Aires, perto da igreja de La Concepción. Conheço bem esse bairro. Meu ponto de partida foi uma palavra, uma palavra que usamos quase todos os dias sem nos dar conta do mistério que nela há, exceto que todas as palavras são misteriosas. Pensei na palavra inesquecível. Unforgettable, em inglês. Detive-me, não sei por que, já que havia ouvido essa palavra milhares de vezes, quase não passava um dia sem que a ouvisse. Pensei: que coisa extraordinária seria se houvesse algo de que realmente não pudéssemos nos esquecer? Que fantástico seria se houvesse, no que chamamos realidade, uma coisa, um objeto, por que não?, que fosse realmente inesquecível!


Este foi meu ponto de partida, bastante abstrato e pobre: pensar no possível sentido dessa palavra ouvida, lida, literalmente inesquecível, unforgettable, unvergesslich, inouviable. Foi um consideração bastante pobre, como vocês podem ver.
Depois, pensei que se existe algo inesquecível, deve ser algo comum, já que se tivéssemos uma Quimera, por exemplo, um monstro de três cabeças, uma cabeça, se não me engano, de cobra, outra de serpente, outra de cão, não tenho certeza, certamente recordaríamos isto. De modo que não haveria graça nenhuma num conto com um minotauro, uma quimera, um unicórnio inesquecíveis. Não, teria que ser alguma coisa bem comum. Ao pensar nessa coisa comum, pensei imediatamente numa moeda, já que são cunhadas milhares e milhares de moedas absolutamente iguais. Todas com a efígie da liberdade ou um escudo, ou com certas palavras convencionais. Que coisa extraordinária seria se houvesse uma moeda, uma moeda perdida entre esses milhões de moedas, que fosse inesquecível. Pensei, assim, numa moeda que já saiu de circulação, uma moeda de vinte centavos, uma moeda igual às outras, igual à moeda de cinco ou à de dez centavos, um pouco maior. Que coisa extraordinária seria se, entre os milhões, literalmente, de moedas cunhadas pelo Estado, houvesse uma que fosse inesquecível. Daí surgiu-me uma idéia: uma inesquecível moeda de vinte centavos. Não sei se elas ainda existem, se os numismáticos as colecionam, se elas têm algum valor, mas, enfim, não pensei nisso naquele instante. Pensei numa moeda que, para os objetivos do meu conto, teria de ser inesquecível. Isto é, uma pessoa que a visse não poderia mais pensar em outra coisa.


Depois, encontrei-me diante da segunda ou terceira dificuldade. Perdi a conta das dificuldades. Por que essa moeda viria a ser inesquecível? O leitor não aceitaria tal idéia. Eu tinha de preparar o inesquecível da minha moeda, e para tanto convinha supor um estado emocional em que ele a via, tinha de insinuar a loucura, já que o tema de meu conto é um tema que se parece com a loucura ou a obsessão. Pensei, como pensou Edgar Allan Poe quando escreveu seu merecidamente famoso poema “O corvo”, na morte de uma mulher bonita. Poe se perguntou a quem poderia impressionar a morte dessa mulher bonita e deduziu que tinha de impressionar a alguém que estivesse apaixonado por ela. Daí cheguei a idéia de uma mulher, por quem, no conto, estou apaixonado, e que morre, o que me deixa desesperado. Neste ponto, teria sido fácil, talvez fácil demais, que essa mulher fosse como a perdida Leonor, de Poe. Mas, não. Decidi mostrar essa mulher de um modo satírico, mostrar o amor de quem não esquecerá a moeda de vinte centavos como um pouco ridículo. Todos os amores o são para quem os vê de fora. Assim, ao invés de falar da beleza do love splendor, converti-a numa mulher bastante trivial, um pouco ridícula, nem feia nem muito linda. Imaginei uma situação que ocorre com freqüência: um homem é apaixonado por uma mulher, não pode viver sem ela, mas, ao mesmo tempo, sabe que essa mulher não é especialmente recomendável, digamos, para sua mãe, para suas primas, para a camareira, para a costureira, para as amigas. No entanto, para ele, esse mulher é única.

Isto me levou a uma outra idéia: a de que talvez toda pessoa seja única e que nós não vemos o extraordinário que fala a favor dessa pessoa. Às vezes, penso que isto se dá em tudo. Senão, fixemo-nos no fato de que na natureza ou em Deus, Deus sive Natura, como dizia Spinoza, o importante é a quantidade e não a qualidade. Por que não supor, então, que haja algo singular em cada formiga e que por isso Deus, ou a natureza, cria milhões de formigas. O que é falso. Não há milhões de formigas, há milhões de seres diferentes, mas a diferença é tão sutil que nós as vemos como iguais.

O que é, pois, estar apaixonado? Estar apaixonado é perceber o que há de extraordinário em cada pessoa, singularidade essa que não pode ser comunicada a não ser por meio de hipérboles ou de metáforas. Então, por que não imaginar que essa mulher, um pouco ridícula para todos, pouco ridícula para quem está apaixonado por ela, que essa mulher morra. Depois, temos o velório. Escolhi o lugar do velório, escolhi a esquina, pensei na igreja da Conceição, uma igreja não muito famosa nem muito interessante, e no homem que, depois do velório, vai tomar um refresco num botequim. Paga, dão-lhe uma moeda de troco, e ele percebe, em seguida, que há algo nela: foi riscada, o que a diferencia das outras. Ele vê a moeda, está muito emocionado pela morte da mulher, mas, ao ver a moeda, já começa a se esquecer de tudo e a pensar somente na moeda. Eu tinha, assim, o objeto mágico para o conto. Depois é que surgem as tentativas do narrador de livrar-se de sua obsessão. Diversos artifícios são utilizados: um deles é perder a moeda. Leva-a, então, a outro botequim, distante dali. Usa-a para pagar, procura esquecer em que esquina o botequim se encontrava, mas isso não resolve o problema, ele continua pensando na moeda. Chega a extremos um tanto absurdos. Por exemplo, compra uma libra esterlina, com São Jorge e o dragão, examina-a com uma lupa, procura pensar nela e esquecer a moeda de vinte centavos, já perdida para sempre, mas não consegue livrar-se da lembrança. Até o final do conto, o homem vai enlouquecendo, mas pensa que essa mesma obsessão poderá salvá-lo. Isto é, haverá um momento no qual o Universo já terá desaparecido e o próprio Universo será uma moeda de vinte centavos. Então ele, e aqui produzi um pequeno efeito literário, ele, Borges, estará louco, não saberá mais que é Borges. Já não será outra coisa a não ser o espectador dessa perdida moeda inesquecível. E conclui com uma frase devidamente literária, isto é, falsa: “Talvez por detrás da moeda esteja Deus”. Ou seja, se alguém vê uma só coisa, essa coisa única é absoluta. Há outros episódios que esqueci, alguns talvez que vocês recordem. Ao final, ele não pode dormir, sonha com a moeda, não pode ler, a moeda se interpõe entre o texto e ele, quase não pode falar senão de um modo mecânico, por que realmente está pensando na moeda.
Assim termina o conto".

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