Historieta de um tempo atrás:
Seu benevides
Onde está meu cachorro?
Era só o que sabia dizer o homem, deitado na calçada à frente de seu prédio, com a cabeça vermelha de sangue.
Onde está meu cachorro, porra?
O guarda Benevides não sabia o que responder. Não sabia de cachorro nenhum, não sabia que homem era aquele, nem o que fazia ali na rua tarde da noite, muito menos o porquê da cabeça dele estar vermelha de sangue.
Onde está o cachorro, porra?
Não se cansava de repetir. O guarda Benevides estava ficando irritado; mandou o moço se acalmar que ele não tinha visto nenhum cachorro por ali. Iria chamar a ambulância, se o moço quisesse, para tratar de cabeça dele vermelha de sangue.
Não preciso de ambulância nenhuma, eu quero o meu cachorro guarda de merda!
Daí o guarda Benevides não agüentou: deu um chute na boca do estômago do moço, pum, que urrou de dor, mas depois ficou calado, e não se mexeu mais. O guarda mandou ele se acalmar , que não tinha cachorro nenhum por ali, e que era para o moço ficar quieto, se não ele mesmo o levaria a força para um hospital.
..
O guarda Benevides, ou Seu Benevides, como o chamavam os grã-finos do bairro, era guarda-noturno há 10 anos. Nunca se incomodara nesse tempo. Trabalho fácil. Os marginais, por algum motivo que ele desconhecia e nem queria saber, passavam longe dos prédios dos grã-finos. E ele achava o máximo isso, se sentia poderoso. Os marginais tinham medo do Seu Benevides, era nisso que acreditava.
Uma vez tinha visto dois homens sentados na frente da calçada do prédio do Juca, o porteiro, que era seu primo. Notou de longe o naipe das figuras, e foi se aproximando aos pouquinhos, caminhando sem pressa. Botou a mão no bolso e apertou firme a calça jeans , como sempre fazia quando estava diante de um perigo iminente. Aproximou da calçada do prédio, tirou seu boné e abanou para as figuras sentadas, que não responderam. Benevides parou e repetiu o gesto. Dessa vez os homens olharam para ele, mas não fizeram nenhum sinal. Benevides, irritado, chegou mais perto, perguntou, educadamente, o que os dois faziam ali sentados àquela hora da noite. Nada de resposta. Então, pegou seu cacetete de aço de dentro do casaco e bateu nos dois, pum pum, duas pauladas, uma em cada cabeça, sem quase nenhum intervalo de tempo . Os dois caíram no chão, com suas cabeças em um vermelho cor de sangue. Benevides olhou para dentro do prédio para ver se Juca estaria por ali , mas não achou ninguém, e tratou de terminar o serviço. Deu mais dois chutes em cada um, na boca do estômago e nas costas, pum pum, rápido, sem intervalo, que nem aqueles ninjas de filme chinês. Com calma, pegou os corpos, um de cada vez, e tratou de embrulhá-los nos sacos de lixo que tinha em sua mochila. Carregou cada corpo até a casa abandonada da esquina, onde pacientemente terminou o serviço à luz de uma pequena fogueira, cortando-os em pedaços com uma serra e alimentando o seu cachorro Rex, velho já, que por sua vez estava tratando de uma enorme mordida no pescoço que levara uma semana antes. O cachorro estava deitado num canto escuro, em baixo de uma janela aberta, e quando Benevides chamou-o, Rex,Rex, vem cá, o cachorro pulou de alegria e lambeu a mão vermelha do seu dono, parecendo já recuperado do ferimento. Benevides mostrou os pedaços para Rex, que latiu baixinho de felicidade, e logo depois estava os dois, guarda e cachorro, sentados sob a luz da fogueira, um olhando o outro comer, os dois igualmente com uma alegria indescritível em seus rostos cansados.
Fazia dois anos que Rex se fora. Seu Benevides não foi trabalhar no fatídico dia, passou a noite chorando em casa. Depois que se recuperou, nunca mais encontrou outro cachorro decente. De vez em quando achava um na rua, perdido, levava para casa, treinava-o, mas logo depois eles iam embora, ingratos. No mês passado, tinha encontrado um igual ao Rex, mas igualzinho mesmo. Ficou intrigado porque Rex nunca teve filho, Benevides nunca deixou seu cachorro por aí para engravidar cachorrinhas interessadas no seu sêmen de campeão. Mas, de alguma forma, o cachorro era igualzinho a Rex, e só poderia ser filho dele, ou quem sabe pai, porque Rex morreu cedo, com 4 anos .
Observou o cachorro parecido com Rex por algumas semanas, conheceu seu dono, viu sua casa, seus hábitos, onde passeava, suas vizinhas. Descobriu então que o cachorro era irmão gêmeo de Rex. O dono namorava a moça loira que morava no prédio do Juca, seu primo, e todo dia que vinha visitar a namorada trazia o irmão do Rex junto. Uma semana atrás, tinha tido o primeiro contato com o bicho, numa esbarrada. O cachorro saiu correndo lépido pelo corredor do prédio e Benevides, que conversava com Juca, parou e fez uns carinhos no cão, que logo se acalmou e se fez de morto, para a alegria de Benevides que assim o acariciou com vigor, passando sua mão vermelha por todo o corpo tez do cachorro. Ali fez uma promessa: o cachorro ia ser seu, de qualquer maneira.
Arquitetou um plano que não poderia ter falhas, porque só teria uma chance, era matar ou morrer.
Não queria envolver seu primo Juca, mas era a única forma, não tinha muito tempo. Sabia que o irmão do Rex estava sendo cortejado pela cachorra do prédio vizinho. Já tinham até marcado um encontro para ver se os dois se dariam bem, e os donos aprovavam a união, torcendo para que dali saísse muitos cachorrinhos . Benevides pediu para Juca : quando o dono do irmão do Rex estiver saindo da casa da namorada, avisa que tem um moço que quer falar com ele na frente do prédio. Não deu mais detalhes , não precisava envolver demais as pessoas para uma coisa que iria ser só sua, unicamente sua . Juca fez o combinado. Benevides esperava ansioso na calçada, com a mão no bolso apertando ferozmente a calça jeans. Quando avistou o moço, tratou de se aproximar devagar, com cuidado para não apavorá-lo. Perguntou, educadamente, como era o nome do cachorro. Sabia que era Kuki , mas achou que era uma boa primeira pergunta. O homem respondeu , também educadamente, e Benevides se abaixou para fazer carinho no irmão do Rex. Enquanto fazia carinho, puxou seu cacetete de aço de dentro do casaco, devagar , e deu uma paulada na nuca do moço, que estava de costas para ele. Pum. O moço já caiu desmaiado no chão. Agora tinha que agir rápido. Pegou o cachorro no colo e saiu correndo em direção à casa abandonada da esquina. Ao redor de uma pequena fogueira, fez o bicho deitar, deu água, fez carinho até ele se acalmar e quase dormir, bocejando . Então saiu , voltou para o prédio. Viu o homem ali na frente, que ainda estava acordado, inexplicavelmente.
Onde está meu cachorro ?
Era só o que dizia o homem, deitado na calçada com a cabeça vermelha de sangue.
Onde está meu cachorro, porra?
Benevides não sabia o que responder. Tentou se acalmar. Disse que não tinha visto cachorro algum ali , que ia chamar uma ambulância , se o moço quisesse, para tratar da cabeça dele vermelha de sangue.
Não preciso de ambulância nenhuma, eu quero o meu cachorro guarda de merda!
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
´Leo, adorei teu blog...adoraria fazer um pra mim nesse estilo, mas quando vejo, já fiz um desabafo e pronto. Mas sempre que posso, coloco um poeminha por lá! Bjus da Bia
Postar um comentário