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Três jovens da cidade de Santa Maria, RS, num dia sem muitas coisas para se fazer, resolveram caminhar em direção a antiga Gare da estação férrea da mesma cidade. Desde 1996, quando houve a privatização das linhas de trem e a consequente suspensão dos vagões de passageiros, a gare funciona apenas como um espaço de passagem de pessoas entre bairros. Houve tentativas de fazer do local um espaço cultural, mas as tentativas continuam até hoje. O parque ferroviário em que a gare se insere continua lá, desta vez servindo a empresa particular que comprou as linhas da região sul do país.
Pois bem. Neste dia, os três jovens sem afazeres momentâneos, decidiram ir até lá, observar a bela paisagem dos morros ao fundo e, logicamente, observar os movimentos dos trens que ali circulam sem uma periodicidade explicável. Ficaram algum tempo lá, até que resolveram chegar mais perto dos trens, para ver se conseguiam satisfazer sua enorme curiosidade de estar numa destas máquinas de alguns muitos e muitos anos de existência em movimento. Conseguiram dar uma breve volta pelo pátio, e só.
Esse dia acabou sendo considerado, tempos depois, como o marco inicial de uma idéia um tanto saudosista, outro tanto aventuresca: viajar de trem, de carona nos vagões de carga.
Alguns meses depois, já com algumas viagens por cidades da região no currículo, eles resolveram tornar aquela atividade, que beira a ilegalidade, em um passatempo regular. Descobriram que, realmente, o trem só aceita um passageiro legal: o maquinista. O restante das pessoas que se incorporam no trem não podem ali estar, apesar de também não quererem nada além de estar ali.
De algumas breves complicações com a segurança da empresa particular que adminsitra a linha à simpatia dos policiais foi um curto passo. Nada se pode fazer, dizia a polícia, que depois de recolher os jovens, levavam-os para a sua sede, ouviam suas histórias e, no fim, acabavam levando-os para um local onde pudessem continuar sua viagem, de trem.
Os jovens conheceram as dificuldades das viagens, mas quanto mais elas existiam, maior era o interesse deles em conhecê-las. Numa destas, descobriram que as pontes onde os trilhos passam são fechadas em cima por pequenas armações de concreto, espaçadas cerca de meio metro entre uma e outra. O local mais frequente de viagem, em cima dos vagões, ganhava um perigo novo: para passar essas pontes, só deitado - ou então a vida dos jovens poderia acabar ali.
Ao contrário de impedí-los, o perigo os motivou. Queriam saber mais sobre os vagões, para poderem escolher os melhores a se viajar. Acharam algumas informações, mas nada que os desse alguma certeza.
Depois de um tempo, viram que não precisavam descobrir mais nada. Afinal, talvez fosse a incerteza que os motivasse a estarem ali, erm cima de um trem, indo para algum lugar pouco conhecido e, por isso mesmo, muito admirado.
Para organizar seus anseios comuns, resolveram escrever um pequeno manifesto, o Manifesto dos Caroneiros de trem. É um embrião inicial de alguma coisa que não se sabe no que vai dar, ou mesmo se vai dar em alguma coisa. É uma incerteza, mas que já se adequou ao "mundo moderno (me tira logo deste inferno!)*" criando uma comunidade no orkut.
Bom, aí está o manifesto:
Por algum motivo que hoje só parece ser nostalgia de um tempo não vivido, nós gostamos de trem. Deles chegando numa pequena cidade, barulhentos e ao mesmo tempo discretíssimos em sua rotina que não pára nunca; deles apitando tragicamente anunciando sua partida lenta e que parece sempre estar atrasada; deles parados nos trilhos fazendo manobras incompreensíveis aos nossos olhos de fora da companhia que os administra. E desse fascínio por muitos incompreendido e por outros tantos perfeitamente aceitável é que, sem aviso muito prévio, decidimos viajar com eles. O problema é que são trens de carga os que vemos e admiramos, e trens de carga hoje só levam um passageiro, o maquinista.
Por esse pequeno detalhe, nossa viagem, para ser concretizada, tem de ter um embarque às escondidas, e muito provavelmente uma saída da mesma forma, para que não nos vejam e nos acusem de uma coisa ilegal como roubar o conteúdo que os misteriosos vagões carregam consigo. Não é, nunca foi e nunca vai ser essa a nossa intenção.
O que queremos, na verdade, é apenas curtir um vento na cara, viajar por campos ermos sem a barreira natural do asfalto ou das rodas, escutar a sinfonia trepidante dos encaixes de cada pequena parte dos trilhos, descarregarmos uma grande dose de adrenalina em todo o nosso corpo, e, acima de tudo, conhecer o significado pleno de uma palavra que hoje virou utopia de sonhadores ultrapassados: a liberdade.
Longe do rigor de um manifesto normal, esse é apenas uma compilação de anseios comuns, como já foi dito. Por trás dele, talvez, esteja um sentimento de querer compartilhar experiências e sensações, momentos e vivências que farão parte das lembranças de uma época em que se podia, sim, desejar a liberdade como um fim qualquer para alguma coisa.
*: Créditos a música ainda não lançada da banda Autoramas, Mundo Moderno.
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