quinta-feira, agosto 10, 2006

Conto

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Um trabalho de uma das disciplinas da faculdade (que é de Jornalismo) dava o início e o fim de um conto do Moacyr Scliar, e nós fazíamos o meio.

Maneira um pouco diferente daquela velha brincadeira, por sinal muito divertida, de continuar a história. Saía tanta bobagem sem qualquer nexo uma com as outras que parecia competição de quem criava a continuação mais absurda.

Mas como é um trabalho de faculdade, de um professor pra lá de metódico, há um pouco mais de seriedade. Mas só um poquinho.

Aí vai o resultado




MUITOS E MUITOS METROS ACIMA DO BEM E DO MAL



No fim da rua havia um terreno baldio, e no fundo deste, uma casa em ruínas, na qual Lúcia e eu costumávamos brincar. Todos diziam que a casa era mal-assombrada, que fantasmas eram vistos seguidos por ali. Mas Lúcia e eu não tínhamos medo. Não tínhamos medo de nada. Estávamos ambos com dez anos, idade em que as crianças costumam ter medos de fantasmas; mas nós, nós não tínhamos medo de nada – até que

uma tarde, daquelas que parecem não ter diferença para inúmeras outras, saímos da aula mais cedo e fomos para a casa em ruínas, Lúcia e eu. Era começo de inverno, dia cinzento, um dos primeiros dos inúmeros que seguiriam assim até o fim daquele inverno. Como tínhamos tempo, Lúcia sugeriu um outro caminho, que apenas ela conhecia: seguir até o início da malha ferroviária, que ficava há algumas quadras do terreno, e de lá seguir pelos trilhos até os fundos da casa.


Fomos caminhando pelos trilhos, quase correndo, na torcida silenciosa pela presença de um trem – que naquela época costumava passar diversas vezes ao dia, carregado da safra de grãos da serra. Quase não nos damos conta quando avistamos a casa, imponente e misteriosa lá embaixo do elevado onde ficavam os trilhos. Lúcia, sempre na frente, se jogou no primeiro caminho que avistou para descer. Resolvi esperar ela chegar lá embaixo, mas enquanto baixava os joelhos para pegar uma pedra fui surpreendido por um “ai!” vindo de um lugar não muito longe. Que se repetiu:

_ Ai!, ai!, Pedro, desce aqui.

Desci correndo, e por um pulo de puro instinto antes de um tronco caído não engrossei o coro do “ai!”. Lúcia estava no chão, com as mãos segurando o joelho direito, que jorrava um sanguesinho que não me pareceu nada de grave. Ainda assim, com mais cavalheirismo do que hoje em dia, resolvi acudir ela; juntei umas plantas por perto, limpei com elas o sangue, e levantei Lúcia, que certamente me debochando, logo saiu correndo e entrou pela cerca que dava diretamente na casa.


Lúcia e eu entramos na casa pela única parte que tinha teto, como sempre fazíamos. Sentamos numa espécie de banco formado por restos de concreto da cozinha, e de lá conseguíamos olhar, pela janela que não mais existia, os trilhos no alto do elevado. Lado a lado, as cabecinhas voando e se encontrando apenas em pensamento, sentíamos uma estranha sensação de perigo, até medo, e com ela é que silenciamos de repente e passamos a observar a vista através dos restos da janela.

_ Acho que vai passar um trem, disse Lúcia.
_ Ele sempre apita antes, acho. Ouviu algum?

Parei de falar, ou falei e nem escutei o que disse, tamanho o barulho que o trem fez ao apitar, um estrondo tão forte que Lúcia pulou, se aproximando perigosamente do meu colo. Quase saltei junto para evitar a situação, mas não precisou, porque ela própria sentiu o que aquele gesto poderia atrapalhar no futuro e se equilibrou novamente, com ajuda da perna do joelho machucado. O trem ainda apitava quando ouvimos outro estrondo, dessa vez abafado por um barulho que parecia ser de galhos quebrados.


_ Alguma coisa caiu do trem, disse eu.
_ Shhhhh!, acho que foi aqui do lado. Parece que alguém caiu do trem, disse Lúcia.

Terminou de falar e disparou em direção à frente da casa, que parecia ainda mais escura naquele dia cinzento. Coberta em parte por um teto destroçado e em outra pela sombra de uma enorme figueira nascida no pátio, aquele pedaço da casa era o principal motivo pelo qual chamavam o lugar de mal-assombrado. Dizia a lenda que depois que a casa foi abandonada, a figueira começou a se retorcer toda, destruindo o telhado ao mesmo tempo que, como aquelas árvores que se transformam em gente, foi tomando conta de toda a casa, se tornando uma espécie de guardiã dali.

Lúcia, e eu atrás, nos deslocamos para um canto que pareceu protegido, e ali ficamos. O barulho de galhos quebrando deu lugar a um outro, cada vez mais perto, de pegadas pesadas e rápidas circundando a casa, como se procurasse um lugar seguro para ficar. Perguntávamos se eram de homens aqueles passos fortes quando a janela em cima de nós escancarou para dentro, esclarecendo a nossa dúvida: um senhor gordo e aparentando idade avançada entrou e caiu exatamente meio metro da perna direita de Lúcia, que estava esticada. Apavorado como nunca antes, não lembro direito que aconteceu, mas a conseqüência foi que o velho estatelou-se no chão, caindo com o rosto e os braços virados para nós, como se nos abraçasse.

Lúcia soltou um grito tão forte que desmaiou. Verifiquei se o homem estava morto, e foi com um misto de pesar e alívio que retirei a mão do pescoço dele depois de quase um minuto: estava. Observei a cena dos dois deitados quase que abraçados, e num daqueles minutos que duram muito mais do que um minuto, caminhei pelas ruínas da casa serenamente, olhando para cada canto com uma curiosidade que nunca mais tive na vida, tamanho parecia o tempo que eu deixava meus olhos repousarem no concreto demolido. Conheci a sala, dois dos quartos, até o banheiro, que ainda tinha um vaso apto para o serviço. Quando voltei à parte da frente, Lúcia acordava. Um pouco atordoada, ela levantou, olhou novamente para o velho, agora não parecendo mais tão apavorada:

_ Vamos embora daqui, antes que ele levante.
_ Ele está morto, não vai levantar, eu disse.

Corremos do terreno até chegar na rua. Desta vez seguindo o caminho tradicional, só falamos quando chegamos na frente da casa de Lúcia.

_ Ele tinha um rosto estranho, mas não me parecia mal. Pelo menos não do jeito que a gente imagina uma pessoa má, disse Lúcia.
_ Também achei isso. Será que não devemos avisar alguém do corpo?


Lúcia firmemente disse que não, que alguém acharia o corpo e era melhor ninguém saber da nossa passagem por ali. E que a gente deveria esquecer o assunto, para sempre. Apesar do peso na consciência, não quis discordar, ainda mais quando ela me deu um beijo de despedida, o primeiro de inúmeros outros que se seguiriam tempos depois, quando namoraríamos.


No terreno baldio construíram, muitos anos depois, um enorme edifício de apartamentos. Ali fomos morar, Lúcia e eu, quando nos casamos. Temos dois filhos, um casal. Somos muito infelizes. Às vezes Lúcia diz que isso é porque vivemos sobre os ossos do pobre velho. Não acredito. Afinal, são doze andares, e nós moramos na cobertura. Muitos e muitos metros acima do bem e do mal.



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2 comentários:

Anônimo disse...

letto!
nem sei o que dizer sobre o teu texto.. eh daqueles que nao dah pra parar de ler, envolvente.. eu adorei!!!
parabens por todo o teu trabalho!!
to acompanhado aqui nas tuas duas paginas! :)
beijos
tati

Cobertura de Eventos disse...

bah, agora achei o teu outro blog... também tá massa cara

esse texto do scliar foi muito divertido fazer, canal mesmo

vê aí o meu: http://tiagoarm.spaces.live.com/blog/cns!94016986F79AAE83!149.entry

abraço