sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Sobre ética

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O Dicionário Aurélio Buarque de Holanda, um dos mais confiáveis do país, diz que ética é "o estudo dos juízos de apreciação que se referem à conduta humana susceptível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente à determinada sociedade, seja de modo absoluto”. Ética jornalística, portanto, seria algo como “o estudo dos juízos de apreciação que se refere à conduta do jornalista”, se for possível algum tipo de definição. Geralmente, para diferenciar ética de moral, se utiliza algumas sentenças do tipo “ética é universal, moral é cultural”, ou “ética é teoria, moral é prática”.

Por ser cultural, a moral é pessoal, varia, enquanto a ética não, é intransponível. Etimologicamente falando, ética vem do grego "ethos", e moral vem do latim "morale", que tem o mesmo significado: Conduta, ou relativo aos costumes. Como os radicais trazem um conceito simplista, bastante relativo, melhor mesmo é diferenciar ética e moral do que igualá-los. Acontece que, como toda profissão que tenha um código de ética, e acredito que todas tenham, a ética da profissão exige uma adequação da moral de cada um que é impossível de se obter. Uma pessoa que se embriague de sua moral não vai respeitar a ética, pois se considera acima. E assim cometerá erros crassos, não aprenderá com eles e continuará repetindo ad infinitum até que, ingrato mundo, ela obtenha vitória seguindo sua moral e não a ética, tão solene e generalista. Pra que ética então, se ela é frágil a ponto de deixar o ser humano a desrespeitá-la?

A ética pode ser frágil, mas não é conivente, não aceita desaforos; apesar de que não pune desvios da maneira que devia por que isso faz parte de sua natureza plural. E o fato dela ser frágil não significa que ela não tenha de existir, por que, se não há ética, há o caos, a falta de juízos de apreciação e de qualificação entre o bem e o mal torna tudo suscetível e regido pela moral, senhora perversa e individualista que acabaria por espalhar o caos em todas as partes. Mas, não sendo apocalíptico, a ética profissional, como uma subdivisão da ética Ética, é apenas um conjunto de regras a serem seguidas fortemente influenciadas pela moral. E a moral de cada um, por mais desobediente e segura de si que seja, funciona, em relação à ética, como aquela velha história da utopia: não é porque não consigo adequar minha moral a ética que deixarei de tentar, assim como não é por ser uma utopia que deixarei de tentar fazer com que se torne verdade, assim como, entrando mais no jornalismo, não é porque a objetividade seja inatingível que não tentarei atingi-la.

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terça-feira, fevereiro 21, 2006

Manuscrito achado

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Parece querer diminuir e não encontrar seu lugar
De tão pequeno, livre e sonhador, não pensa mais em existir.
Donde estás, donde estás,
Não obtém resposta e teme a pergunta
Olha, enxerga, de longe, mas onde é mesmo que se esconde ?

Irritado, quer fugir, voar e planar
e encontrar aquele sinal, fraquinho,
quase embriagado de tanto esperar,

zombeteiro de tão fraco que está
aproxima e tenta provocar,
mas desiste quando ele lhe faz lembrar
que nunca soube, donde estás?

agora ele quer se entregar
e insiste em se esconder,
desaparecer de tanto lutar
evaporar, cair sem se machucar

"Não é tão fácil assim",
alguém aparece para falar
"não reconhece tua condição
ou de tão pequena já sumiu?"

Abalado ele volta atrás
ou não sabe, además,
pra que te esconde se não sabe onde?






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sábado, fevereiro 18, 2006

Cenas Buenairenses (4): Palermo

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"Pega essa rua aí da frente, a Jorge Luis Borges, e anda umas quadras que tu chega na Plaza Cortázar."






Fiz o que um simpático velhinho me disse pra fazer.


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Pega a rua Jorge Luis Borges que vai dar na Plaza Cortázar. Só Buenos Aires mesmo.
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( os velhos portenhos ,e argentinos em geral, são sempre simpáticos e parecem exalar sabedoria de vida. São as pontinhas de fio que resistiram ao tempo e trazem consigo o glamour de outras eras. Ainda bem que Buenos Aires está cheio deles)

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Palermo é um bairro residencial-boêmio; das boates, dos pubs, das lojas chiques, dos grandes prédios de apartamentos da classe média-alta e alta da cidade, das ruas arborizadas e tranquilas frequentadas por gente bonita e bem vestida, dos cafés onde os "intelectuais" gostam de se reunir ( esses mesmos cafés que, peculiaridade local, tem menus com todas as coisas em dois preços: um até as 22 e outro após), do convívio - mais explícito que outros locais da cidade - de tradição e modernidade. É um bairro um pouco afastado do centro, há cerca de uma hora de caminhada . Ao sul, o bairro conta com inúmeros parques (incluso o Jardim Botânico e o Zoológico) antes de chegar no Aeroporto Jorge Newbery e , logo após, o Rio da Prata.



Um café pelas voltas da Plazoleta Cortázar


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quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Notícia de uma quase tragédia

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Eram alguns poucos minutos passados do meio dia, a temperatura já acima dos 30º graus, e nas proximidades de um prédio na rua Tuiuti, quase esquina com a Floriano Peixoto, houve-se um estrondo. Algumas faíscas caem na calçada, e um homem está deitado na sacada do terceiro andar, em estado de choque. Funcionários de uma loja em frente ao edifício correm para o apartamento para socorrer o homem, que pintava o lado externo do prédio. Ao que parece, num breve momento de distração, o pintor deixou o cabo que estava o pincel encostar nos fios de alta tensão situados quase na mesma altura de sua cabeça. Resultado: uma descarga elétrica forte jogou o corpo do homem, que se chama João Manuel de Oliveira e tem 29 anos, para a sacada em frente. Os funcionários da loja chegam no apartamento para o socorro, ele está consciente, mas apavorado com as queimaduras espalhadas por todo o seu corpo, principalmente no braço e na mão direita. O fotógrafo Luciano Souza, um dos funcionários da loja em frente, ouve de João "cara, perdi minha mão, tenho que trabalhar, uma família pra sustentar", e tenta acalmá-lo, "calma tche, não te apavora, a mão tá aí". E ela está mesmo, chamuscada, igual a todo o braço, que está quase em carne viva, sem pêlos. Manchas pretas estão espalhadas na camiseta, assim como na parede lateral da sacada. Alguns minutos depois das 12:10, hora em que o corpo de Bombeiros é chamado através do telefone, surge o furgão e o caminhão vermelho. A escada é colocada diretamente na sacada e , rapidamente, os bombeiros presentes descem o corpo de João, que é encaminhado direto para o Hospital de Caridade. Eles já adiantam que os braços e os dedos sofreram queimaduras de 2º grau. João ,logo que chega, dá entrada ao bloco cirúrgico do hospital. No início da noite, ele sai para a sala de recuperação, e de lá vai para o Centro de Tratamento Intensivo (CTI). Seu estado é regular.
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Jornal A Razão, 15 de Fevereiro de 2006.


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sábado, fevereiro 11, 2006

Reflexões de Herman (1)

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Herman Oliveira tem 23 anos, nasceu em Santana do Livramento, filho de pai uruguaio e mãe brasileira. Morou em Livramento até os sete e em Montevideo até os 19, quando entrou para o curso de Letras na Universidade de Buenos Aires e lá mora até hoje. Em dados momentos, sem uma periodicidade rígida, ele escreverá para o blog. Como muitos estudantes de letras, Herman também é aspirante a escritor; por isso, os temas de seus escritos serão, em sua maioria, sobre o processo de escrever e literatura em geral. Mas, segundo ele, haverá relatos sobre outras coisas também como futebol e Buenos Aires, duas coisas que ele gosta muito.

Bon Apetit!



VIVER, CONTAR, CRIAR? *

Quem lê Hemingway deduz, cheio de certeza: ele viveu isso. Basta uma olhada na sua biografia e comprovar que sua vida foi tão interessante quanto aquilo que escreveu, se não for até mais. Mas Hemingway, como poucos escritores, viveu tão "intensamente", viajou, namorou, caçou, bebeu e conheceu tantas coisas que para contar suas histórias não precisava mais que sua memória, que, diga-se, era bastante boa em lembrar de detalhes.

Por muitas vezes, ele nem precisava forçar para contar uma história: eram elas, as histórias, que se apresentavam a ele e pediam, encarecidamente, para serem contadas.Então, cabia a ele julgar o que se apresentava, moldar o material que tinha, 'martelar uma bigorna como um ferreiro até que ela se torne rígida e compacta, sem excessos desnecessários', como ele mesmo escreveu na apresentação de um dos seus volumes de contos.

Mas Hemingway é uma exceção ou uma regra?

Acredito, e não é nenhuma novidade, que temos de vivenciar aquilo que contamos, nem que seja apenas na mente, mas o 'estopim' para nossa imaginação criar a história tem de ser uma situação real, acontecida conosco ou com alguém que nos contou tão bem que conseguimos nos colocar no lugar dessa pessoa e vivenciar também.

Quando lia Cortázar sem conhecer sua biografia, pensava na amplitude espantosa de sua imaginação e me custava acreditar que aquilo fosse possível ser contado se não tivesse sido minimamente vivenciado. Mas quando li um pouco sobre sua vida pude perceber que cada conto, cada passagem de 'Rayuela' (O Jogo da Amerelinha)saiu da vivência que ele teve, das coisas que viu, ouviu, tocou. Mesmo as partes mais fantásticas e irreais, ele vivenciou o suficiente para o estopim ser dado. Borges, por exemplo, me parece que não viveu, mas conheceu pessoas que contavam muito bem aquilo que viveram, e a sua rica imaginação, regada a muitos e muitos anos de estudo, tratou de criar o resto. E, diga-se de passagem, criou maravilhosamente bem.

Mas há outra questão também com relação a Borges. Como diz Cortázar de Goethe em 'Rayuela', Borges é um daqueles que estão com seus pseudópodes estendidos ao máximo em todas as direções , e eles abrangem com um diâmetro uniforme tudo aquilo que está em seus domínios, enquanto que nós, pobres humanos, apenas soltamos nossos pseudópodes em uma direção, embora nunca se saiba qual. É essa percepção aguçada que os torna clássicos.

Para finalizar, acredito que terá um bom resultado naquilo que escreve quem mais conseguir extrair a essência do que vive e criar, refletir sobre isso; a imaginação mais fértil aliada a melhor forma de contar aquilo que imaginou. Ou, quando se tem uma vida ao estilo Hemingway, saber selecionar o que viu e relatar. Bem, como se fosse "apenas" relatar...



*Traduzido do castelhano.

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sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Cenas Buenairenses (3): San Telmo

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Plaza Dorrego, San Telmo.



Os pássaros e o cantante de doces

18:28

Tarde de caminhada pela cidade. A temperatura é agradável tendendo a ficar calor, mas coloco o casaco para poder carregar a máquina, os mapas e outros papéis nos bolsos de dentro do mesmo, e não ter de carregar tudo na mão - o que, convenhamos, limita e muito o contato táctil com os lugares por onde passo. Chego no bairro de San Telmo, perto do centro e do rio, conhecido pelos seus inúmeros antiquários, suas ruas estreitas de calçamento e por seus cafés. Cansado, decido me sentar na mesa mais perto da rua numa linda praça cheia de pombos. Sou o único sentado nas mesas, inexplicavelmente. Mas acho que é por pouco tempo. Depois de um tempo descansando e observando os pombos desfilarem como se fosse os zeladores da praça, peço o café. Nem olho o preço. Finalmente achei um lugar que clame espalhafatosamente por um café.


18:41

Mas é barato. $2,50 pesos, mesmo preço daqui. E é bom, como a maioria dos daqui. Vem com água, também como os daqui, e com um potinho cheio de grãos que parecem castanha. Não, não é castanha. Pistache! Lembro do gosto do meu sabor de sorvete preferido. Pistache! Isso não tem nos daqui. E o gosto casa bem com o do café.
As mesas começam a encher. Pai e filho falam uma língua estranha na mesa ao lado; pelos beicinhos que fazem, é francês. No outro lado, três homens conversam animadamente em outra língua; pelo tom de voz alto , é italiano. É próxima do português, acho que mais fácil de se compreender que o espanhol falado - sempre rapidamente - pelos portenhos. Homens de terno e mulheres de tailleurs na mesa a frente vieram provavelmente direto do trabalho; é aniversário de algum deles, cantam parabéns, e levantam as canecas de chope para um brinde.


18:49

Todos os chopes são servidos com uma pequena bandeja de amendoins. Pombos adoram amendoim. Devagarinho, como se fossem na ponta dos pés para não fazer barulho, eles aproximam-se da bandeja; vão pelo chão, pulam (ou voam) nas cadeiras, passam para as mesas, e esperam um bom momento para a aproximação da bandeja e o gozo final, a bicada no amendoim. Mas as pessoas das mesas, vilões de um filme inexistente, não os deixam aproximar. Com as mãos abertas, como se fossem dar umas palmadas num filho malcriado, eles espantam os pombos, que não desistem: começam o percurso novamente, indo para o início do rotineiro circuito-fechado-em busca-do-prazer.


"Parece una película de Hitchcook, Los Passaros"


19:08

Nem sinal de escurecer, os franceses vão embora da mesa. É a hora: os pombos atacam, sobem desesperados na mesa e bicam sem parar os amendoins e os próprios pombos na busca de mais amendoim para si. Chega o garçom, junta o prato e joga os amendoins no chão, os pombos vão atrás, se esbaldam rapidamente. Voltam a vigília das outras mesas; uma bandeja de amendoim é pouco.


19:42

O café acabou, os pistaches acabaram, a água também. Os pacotinhos de açúcar não, e a animação nas mesas começa a aumentar. Um vendedor de balas e outros doces passa de mesa em mesa com seus produtos. Ele não está se importando muito em vender, quer agitar; começa a cantar uma música com uma voz que surpreende pela suavidade e afinação. Pede para que o pessoal da mesa o acompanhe. É a mesa do aniversariante. Animados que já estavam, o pessoal de terno e tailleurs canta, seguindo o maestro vendedor de doces. Todas as outras mesas guiam seus olhares para lá, com sorrisos que vão do tímido "que constragimento!" a gargalhadas "que engraçado, o aniversariante cantou a estrofe errada!". O vendedor pede aplausos e eles surgem, esparsos, mais tímidos que os sorrisos de antes.


19:56

Penso em ir embora, mas o vendedor agora está em outra mesa conduzindo a cantoria. Uma mesa maior, mas não tão animada, pois só duas pessoas parecem cantar. O aplauso vem mais fraco que antes, e o vendedor, agora assumindo o papel de animador de um auditório ao ar livre, pede, para toda a praça ouvir, que se escolha qual mesa cantou melhor. Aplausos mais intensos para a primeira mesa, inclusive o meu. O vendedor levanta a mão do aniversariante, sob palmas, assobios e até gritos de todos os seus colegas de trabalho, parabenizando pela vitória na cantoria. Mas não dá nenhum doce de prêmio.

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quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Cenas Buenairenses (2): La Boca

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La Boca é o bairro:

do Boca Juniors (e de "La Bombonera", o caldeirão mais mortífero do futebol latino)

do Caminito ( uma rua e meia com antigas casas coloridas, com muitos artistas expondo seus trabalhos sobre o Tango, principalmente. Um dos principais pontos turísticos de Buenos Aires.) ,

dos imigrantes italianos, que vieram para para a Argentina no final do século XIX e início de XX e ali se instalaram, construindo sua parte na história da cidade;

dos bares com cantores vestidos com o clássico chapéu que Gardel usava, e , a sua frente, bailando, casais de dançarinos de tango , ricamente vestidos, enquanto turistas e portenhos observam de suas mesas tomando uma Quilmes litro;

na beira do Rio da Prata, que circunda o bairro, definindo seus limites do lado direito, e serve de paradeiro para barcos aposentados, que , juntamente com as ruas de pedra, as casas simples e o povo de olhar melancólico mas falas e gestos apaixonados, formam um belo cenário que não parece pertencer aos pós-modernos anos 2000.



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